O PERIGO DA REVITIMIZAÇÃO NOS DEPOIMENTOS DE MENORES
Até o mês de junho, 377 casos de violência sexual contra menores foram registrados este ano pela Gerência de Polícia da Criança e do Adolescente (GPCA), que recebe todos os dias dezenas de menores — vítimas e acusados. Acompanhada pela mãe, Alice (nome fictício), adolescente de treze anos, foi uma das primeiras depoentes a chegar na GPCA na última quinta-feira. Vítima, ela foi à delegacia denunciar o namorado da avó, que, há quatro meses, a abusa sexualmente.
Alice não contou a ninguém sobre as agressões sofridas. Segundo a psicóloga da Unidade de Apoio Técnico (UNIAT) da GPCA, Carolina Costa, é uma atitude normal na idade dela, pois crianças e adolescentes costumam manter a violência em segredo por três motivos: não têm noção da gravidade do que estão sofrendo; sentem-se culpadas e não vítimas da violência; têm medo contar a agressão e serem consideradas mentirosas. “A opinião da criança, em geral, é desvalorizada na sociedade, principalmente nas camadas sociais mais pobres”, explicou Carolina.
A mãe de Alice não desconfiava de nada até o dia em que atendeu uma ligação do padrasto no celular da filha e ouviu algo que a deixou apreensiva. A garota teve medo de contar o que estava acontecendo, mas falou o suficiente para que a mãe decidisse levá-la à delegacia para denunciar o agressor. “Eu não quis deixar isso impune não. Convenci ela a vir para a delegacia, que é o certo, independente de ser meu padrasto”, afirmou a mãe de Alice. “Eu estou agindo com ele como agiria com qualquer pessoa, não é porque ele é um conhecido que eu vou acobertar”, completou.
A história de Alice não é um caso isolado. O chefe da UNIAT da GPCA, José Rinaldo Carvalho, mostra dados estatísticos que apontam familiares e conhecidos como principais agressores, correspondendo a 82,5% de todos os crimes sexuais praticados contra menores de janeiro a junho deste ano. Por se tratar de um caso delicado, em que os depoentes são crianças e adolescentes e devido à proximidade da vítima com o agressor, as denúncias nem sempre chegam à delegacia e muitas vezes os crimes seguem impunes.
Para refletir acerca de possibilidades de depoimento de crianças e adolescentes que evitem o risco de um novo constrangimento por parte das vítimas, um debate foi realizado em Brasília, no último mês de agosto. Numa parceria com a organização Childhood Brasil, a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) promoveu o 1º Simpósio Internacional Culturas e Práticas Não-Revitimizantes de Tomada de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes em Processos Judiciais. Especialistas do mundo todo participaram do evento.
O colóquio é recente e seu resultado ainda não pode ser percebido; é possível notar, contudo, a consciência social de que o momento da denúncia não pode ser um novo constrangimento na vida da vítima. Nesse sentido, o projeto Depoimento Sem Danos (DSD) — implantado no Estado, em junho desde ano, pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco a partir de convênio com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República — é um avanço. Idealizado pelo juiz José Antonio Daltoé Cezar, da 2ª Vara de Infância e Juventude de Porto Alegre, o DSD tem como principal objetivo promover a proteção psicológica do menor que sofreu violência sexual, impedindo o seu contato com o acusado e a repetição de interrogatórios. Assim, a vítima é ouvida uma única vez em uma sala reservada, evitando o enfrentamento com o acusado e a presença de advogado de defesa ou do próprio juiz.
De acordo com o delegado da GPCA, Reginaldo Gregório, as iniciativas do DSD estão restritas à esfera judiciária. Carolina Costa, lamenta essa situação, “O primeiro lugar que [o Depoimento Sem Danos] deveria ser implantado era a delegacia, que é onde a vítima vai no dia da agressão. Quando o caso vai para a justiça, já faz um ano que ocorreu”. Assim — na tentativa de suprir a não-implementação do DSD —, a GPCA dispõe de seis profissionais capacitados da UNIAT responsáveis por ouvir os depoimentos das crianças e adolescentes e repassá-los, por meio de relatórios, para o delegado responsável, sem que as vítimas precisem repetir o relato e recordar da agressão. A defasagem nesse processo é o fato de que desses seis profissionais da GPCA, apenas a metade possui formação em Psicologia.
A FAMÍLIA COLCHETE
Outra medida do projeto Depoimento Sem Danos para evitar constrangimento das vítimas é a utilização, nas delegacias responsáveis, da Família Colchete, bonecos de pano que dispõe de região genital. Elaborada por agentes do Centro de Referência Interprofissional na Atenção às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (Criar), a utilização da Família Colchete é recomendada durante o atendimento às crianças e adolescentes que sofreram abuso sexual. De acordo com os psicólogos da Criar, esse procedimento concede à vítima a liberdade de explicar a agressão por meio de gestos realizados com os bonecos. Carolina Costa, psicóloga da Unidade de Apoio Técnico (UNIAT) da Gerência Policial da Criança e do Adolescente (GPCA) afirma que mesmo dispondo da Família Colchete, não costuma utilizá-la durante os depoimentos. Ela prefere o uso dos próprios bonecos de pelúcia que enfeitam as salas. “Não se sabe o nível de contato que a criança sofreu durante a agressão e de repente os bonecos da Família Colchete podem assustá-la”, afirmou.
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