terça-feira, 29 de abril de 2008

O caráter cênico III.

Só Hoje tive a oportunidade de atentar-me para as primeiras páginas da xerox do livro História do Espetáculo (FILHO, Hermilo Borba, 1968), fiquei realmente comovida com algumas descobertas e com alguns detalhes conhecidos, mas que sob a ótica do Hermilo Borba Filho soaram bem mais emocionantes. História das Artes Cênicas é uma das cadeiras mais aproveitáveis deste período, não apenas pelo nome, que realmente apresenta-se interessante, mas também pela seriedade do professor e dos alunos.
O primeiro capítulo versa sobre a gênese do teatro, que remonta à Grécia, desmistificando essa visão, pois, atualmente, sabe-se que a arte cênica já era praticada desde a época dos egípcios (Antigüidade Oriental). A partir da perspectiva do grande Hermilo Borba Filho, o instinto teatral é algo inerente ao homem e certamente sempre existiu, como ele profere romanticamente no livro História do Espetáculo: "O teatro é tão antigo quanto o homem e com o homem permanecerá enquanto ele se mantiver sobre a face da Terra.” Acredita-se que a origem do teatro é realmente imprecisa e que talvez ele sempre tenha existido, ainda que sob a forma inconsciente, concedendo a necessidade de transformar-se e transfigurar-se aos humanos, "seres essencialmente teatrais".
Atribui-se à dança o título de mãe do teatro, conferindo a ela o papel de precursora das artes cênicas. Na dança uma das características principais do teatro já estava expressa, a imitação. Drama da Paixão Egípcia é considerada a dança dramáticas mais antiga e descreve a memorável luta entre Osíris e Set, ainda hoje lembrada pelo povo do Egito. Outra condição necessária para a existência do teatro é o caráter literário, pois o texto tem a grande responsabilidade de angariar aplausos ou vaias para a peça.
Na Grécia, a origem do teatro é atribuída a três acontecimentos recorrentes: aos Mistérios de Delos, à louvação às divindades quintoneanas e ao culto a Dionísio. A hipótese do culto ao deus Baco (Dionísio em romano) é a mais creditada, consistindo do sacrifício de um bode, tragos em grego, que dá origem à palavra tragédia. Como Dionísio é o deus da uva e, por conseguinte, do vinho, a festa dionisíaca tinha como característica principal a embriaguez, através da qual o espetáculo, bacanal, era realizado com grande entusiasmo e espontaneidade, sendo saudado pelos fiéis com muita música, dança, sexo e até violência.
Comprovando a origem religiosa e campestre do teatro, algumas cenas do filme Seconds (FRANKENHEIMER, John, 1966) foram analisadas em sala de aula e retratam, segundo o professor Ricardo Bigi, com fidedignidade, na medida do possível, o "ritual Baco", sempre realizado no meio rural.
Os bacanais, após a expansão romana, foram absorvidos pela cultura da Península Itálica, causando escândalos e desordem na capital do Império. Após 186 a.C., o Senado proibiu a sua realização, alegando haver grande vulgaridade, conspirações políticas e até crimes em tal festa. Devido à má reputação que a festa tinha naquela época, ainda hoje a palavra tem uma conotação pejorativa.
Ainda na Grécia, à época de Sólon, a organização teatral passou a ser responsabilidade do Estado, através de uma discussão entre Téspis, primeiro "diretor de troupes" gregas, e o legislador Sólon, que o acusou de mal-caráter por mentir na frente de todos. Em resposta, Téspis esclareceu que se tratava apenas de uma representação cênica. Assim, Sólon percebeu a tênue diferença entre o teatral e o "real" e considerou legítima a prática de tal "mentira", mas fez a ressalva de que ela deveria ficar restrita ao "palco", quando disse: "E aprovando tais maneiras de mentir conscientemente, não poderemos compreender que as achemos boas em relação à nossas convenções e aos nossos próprios negócios."
É engraçado perceber, após tantos séculos, que ainda há pessoas que não conseguem (ou não querem) discernir por completo ficção e realidade, confundindo personagens com atores e atuando (mentindo) como personagens.

Um comentário:

Dio disse...

É engraçado ver as origens dessas coisas que hoje temos tão definidas em nossas cabeças. E ainda escritas por autores como Hermilio, de uma forma tão acessível e fluída. Mais parece que o tetro surgiu através desse diálogo entre Téspis e Sólon, tão simples, porém tão profundo. Afinal, imaginem só se "calma, estou só representando" fosse aceita como desculpa para tudo? Que caos. hehehhe

No mais, sobre as festas dionisícas, eram a melhor representação do teatro. Um autor francês, George Minois, que escreve sobre a história do riso, descreve bem as dionisíacas.
"Nessa festa coletiva, o indivíduo desempenha um papel, 'a fim de sair de si mesmo e de se abrir para o numinoso representando, precisamente, seus paradigmas míticos." Era como um carnaval, onde tudo era permitido, mas só era permitido porque não eram eles, porque os deuses sabiam que era representação. Em troca, ninguém podia rejeitar ou deixar de representar seu papel. Conta um mito (Minois me contou) que Penteu, rei de Tebas, "não quis abandonar seu papel sério, ao passo que os velhos sábios Cadmo e Tirésias estavam travestidos e tinham aceitado dar alguns passos de dança para o deus. Dionísio vingou-se de forma apropriada: persuadiu Penteu a se vestir de bacante e ir observar as cerimônias reservadas às mulheres. Estas, possuídas pelo deus, acreditavam ver um animal feroz e, alucinadas, matavam o rei."

Minois conclui, com base nesses estudos, que a tragédia E a comédia se originaram a partir de Dionísio (a tragédia primeiro, diga-se de passagem). Sobre a comédia, Minois fala que surgiram nas dionisíacas dos campos. Nas festas "os camponeses, pintados ou mascarados, saíam em procissão cantando refrões zombeteiros ou obscenos e carregando um enorme phallos, símbolo da fecundidade. A festa termina por um kômos, saída extravagante de bandos de celebrantes embriagados que cantam, riem, interpelam os passantes. É da kômodia que vem a comédia, os kômodoi eram os comediantes.

Enfim, só uns extras, mas o texto de Minois fala mais de teatro, apesar de o enfoque ser o riso e os deuses, não tem como ele associar esses dois sem falar bastante em teatro.
Bem, falei demais já. É isso. Bela postagem, gabi. O livro também é massa, apesar das confusões de nomes. ahsuehasuehas

Abraços,
Diogo.