O álbum mais revolucionário de 2009 é resultado de uma miscelânea de vídeos do YouTube criativamente sobrepostos em forma de música. Conhecido profissionalmente como
Kutiman, Ophir Kutiel — músico, compositor e produtor musical israelense de Jerusalém — é o responsável pelo
primeiro álbum lançado no YouTube e produzido com mescla de diversos vídeos dessa rede social. A idéia era compor uma espécie de “som colaborativo”. Assim, inspirado, principalmente, pelas batidas do funk, esse músico dedicou-se a vasculhar uploads amadores armazenados na
internet para compor o seu maior sucesso:
ThruYOU. O resultado desse projeto ousado é um álbum virtual composto por sete faixas dignas de provocar inveja a “bandas tradicionais”; sem dúvida, um dos grandes lançamentos de 2009.
Kutiman teve seu primeiro contato com a música durante a infância, quando, aos seis anos de idade, aprendeu a tocar piano, e desde então se mostrou um grande apreciador dessa arte. Posteriormente, ele passou a estudar mais dois instrumentos — bateria e guitarra — e, aos 18 anos, não hesitou em mudar de cidade para freqüentar aulas de jazz no
Rimon Music College, renomada escola israelense de música contemporânea. Ainda na adolescência, ele foi apresentado — pelo amigo e parceiro musical, Sabbo — ao ritmo do “pai do soul”,
James Brown, e ao multi-instrumentista nigeriano
Fela Kuti, em quem se inspirou para compor o seu nome artístico.
O músico israelense já viajou bastante pelo mundo na busca por novos sons, como o reggae na Jamaica, e, atualmente, com 27 anos, ele tem cinco álbuns acumulados na carreira; todos lançados nos moldes tradicionais e a maioria pelo selo alemão
Melting Pop Music (MPM). O penúltimo trabalho de Kutiman, um álbum homônimo, contou com a colaboração musical de muitos artistas israelenses, como
Hadag Nahash, grupo de funk famoso por suas letras de cunho político. Tal álbum teve uma repercussão positiva em Israel, mas Kutiman tornou-se, de fato, reconhecido após a criação do seu projeto musical de vídeo
online no
YouTube.
Lançado em março do ano passado,
ThruYOU é composto por sete faixas de puro
mashup — produto novo formado a partir do conteúdo de outras aplicações da
web —, quase um
ready-made nos moldes de
Marcel Duchamp. O próprio nome do álbum remonta a uma produção conjunta, já que, traduzido para a língua portuguesa, significa “através de vocês”. Visualmente, o trabalho deixa a desejar, afinal consiste em pedaços de vídeo-aulas de instrumentos musicais e clipes amadores de músicos. Kutiman não fez qualquer intervenção na aparência dos vídeos, apenas uma “colagem”, talvez porque propôs um álbum de música e não um áudio-visual. A beleza estética de
ThruYOU está justamente na musicalidade, trabalhada de forma intensa durante dois meses de clausura em que Kutiman só via o próprio computador.
A idéia do álbum surgiu quando o produtor israelense assistiu, no
YouTube, a vídeo-aulas do baterista estadunidense
Bernard Purdie e passou a acompanhá-lo com a sua guitarra. A partir de então, Kutiman, ao buscar vídeos de outros instrumentos para fazer mais sobreposições, descobriu que podia misturar tudo e formar novos sons. Meses antes, ainda em 2008, no Brasil, o cantor
Marcelo Camelo — da banda, em
stand-by,
Los Hermanos — produziu algo bem semelhante, a
Orquestra YouTube, mas com qualidade bastante inferior, por ser praticamente inaudível. Assim, não se pode dizer que criação de Kutiman é, realmente, original; antes dele, outras pessoas já “tocaram
internet”. A virtude de
ThruYOU está no resultado, que fisgou mais de um milhão de internautas em menos de uma semana.
Os gêneros das canções são variados, remontando ora à levada dos clássicos jazz e blues, ora ao ritmo dos mais modernos hip hop e música eletrônica, resgatando também o funk e o soul. A primeira faixa do álbum —
Mother of all funk chords — traz um pouco da cadência de tudo isso, sendo difícil não lembrar de James Brown. Na música seguinte —
This is what it became — ficam notórias as influências do reggae e dos DJs e MCs, estes, inclusive, figuram em vários dos vídeos que compõem
ThruYOU. Pode-se destacar também
Babylon band, quarta faixa do álbum, que, certamente, agrada a legião de fãs da
eletro music. No decorrer de
ThruYOU, a melodia das músicas assume um caráter mais calmo e intimista, destoando um pouco da primeira metade das faixas do álbum. Enquanto as canções iniciais apresentam um tom mais estridente, inclusive com sons de sirene, a segunda parte do trabalho distancia-se da tendência funk, como
Just a Lady, música que encerra o álbum.
Kutiman não se vê como pesquisador musical e admite conhecer pouco sobre
mashup. Ele garante que o processo de criação de
ThruYOU foi bastante ingênuo e concebido a partir de uma brincadeira. Assim, trata-se de um álbum não-comercial, sem qualquer intenção de repercutir — muito menos mundialmente —, tanto que foi divulgado somente para vinte amigos. Em entrevistas mundo afora, o israelense diz que produziu
ThruYOU por amor e apoio aos músicos envolvidos nos vídeos utilizados, por ele, na mistureba áudio-visual e que não almeja ganhar nenhum dinheiro com o projeto. Há uma faixa extra no fim do álbum, intitulada
About, em que o próprio Kutiman agradece a todos que colaboraram — ainda que sem saber — com a sua produção e explica um pouco em que ela consiste.
SÍNTESE DA CENA MUSICAL – Mesmo surgido a partir de uma brincadeira, é impossível não ver em
ThruYOU uma oportunidade para discutir o momento atual da indústria fonográfica. Composto por cenas aleatórias, devidamente identificadas pelos perfis do
YouTube, o álbum traz — sem pedir licença — cem vídeos sobrepostos. Kutiman, ainda que sem perceber, lançou um álbum capaz de suscitar extensos debates acerca de criação coletiva, compartilhamento de arquivos, propriedade intelectual e, até, conceito de arte. Uma vez que não pediu autorização a nenhum dos músicos que registraram os temas originais para criação do seu álbum, Kutiman — além de ter desapontado as pessoas que rejeitam o ideal
mashup por considerarem-no pouco criativo — demonstrou seguir a bandeira
Copyleft de livre reprodução para fins não-comerciais.
Mesmo com a revolução protagonizada pelo artista francês Marcel Duchamp, no pós-Primeira Guerra, com o conceito de
Ready-made, a inserção de elementos cotidianos — a priori sem valor artístico — no campo da arte ainda tem sido bastante rejeitada. E talvez por isso, muitos internautas desprezem centenas de milhares de videoclipes do
YouTube por acreditarem que só os pertencentes aos artistas das grandes gravadoras merecem ser vistos. Esse, sem dúvida, é o maior mérito de Kutiman: sua paciência para quebrar esse dogma contemporâneo — vasculhando um sem número de vídeos caseiros e plasticamente discutíveis — e comprovar que há som interessante para além daqueles consagrados.