quarta-feira, 8 de julho de 2009

“Mas eu não quero ver gente maluca”

Você já imaginou um lugar onde flores pensam que você é uma erva daninha, lagarta faz o estilo fumante-intelectual, um coelho apressado corre porque está atrasado, um gato fica sob sua própria cabeça, chaleiras cantam, urubus são guarda-chuvas, corujas tem pescoço de sanfona, cachorros tem cabeça em forma de vassoura e maçanetas falam? Pode acreditar, esse lugar existe! Pelo menos, em “Alice no País das Maravilhas (1951)”.

Esse é um filme clássico que muitos devem ter assistido quando eram crianças. Entretanto, a interpretação que se tem nesse momento, não é a mesma quando se tem um pouco mais de bagagem intelectual. Pelo menos é o que se espera! Sem dúvida, ter contato com essa obra da Disney é submergir e brincar com a imaginação. Contudo, sem leituras ingênuas, proponho uma visão do filme que busca reconstruir conceitos sem se basear na racionalidade típica das sociedades ocidentais.

Alice é uma garota chateada com sua vida sem grandes emoções. Para ela, sua vida é um livro sem figuras. Acredito que os psicanalistas adorariam ter uma paciente aos moldes de Alice. O filme nada mais é do que arte, certa estética, associada à psique da protagonista (que não é tão protagonista). Ou seja, o que vemos é um determinado imaginário extraído de um sonho, sem necessariamente, importar coisas como, coerência, significados racionais e adequação. O problema – se assim o posso chamar – de Alice está na sua dificuldade em resignificar e recodificar estruturas de pensamento já consolidadas em sua ação, sem, contudo, ter a ajuda de claras passagens cognitivas.

Mas nem pense que nesse mundo surreal – literalmente – há apenas devaneios. O real também está no nonsense (Oscilando entre a "ficção" e a realidade). O encontro de Alice com a lagarta é um deles. Incessantemente, a lagarta pergunta à Alice: Quem é você? Ora, em minha perspectiva, isso pode ser interpretado, na passagem, tanto como um artifício para desqualificar a fala da menina, ou seja, um instrumento autoritário de poder, como uma indagação reflexiva sobre a existência dela. Aqui, o autoritarismo perde espaço para uma ação fenomenológica. A lagarta, na verdade, pergunta à Alice, como é que ela se percebe no mundo. E é a própria inquiridora que dá a resposta ao se transformar em borboleta. E agora eu pergunto, de fato, não somos uma eterna mutação? Não estamos em eterna mudança? Não é isso que somos?

Em um caminho tortuoso, regado a explicações incompletas e conclusões precipitadas, temos um segundo momento que merece destaque. O primeiro encontro de Alice com o gato de Cheshire inicia-se com uma pergunta simples: Qual caminho devo tomar? O gato caminha em uma linha tênue entre loucura e lucidez, é ele que alerta a garota da insanidade dos outros, e dá pistas de como sobreviver neste ambiente. Veja se isso não é a vida real. 1) Estar com os outros, e discordar minimamente deles; 2) Tentar não irritar as pessoas; 3) Elogiá-los; e 4) Se adequar ao local, ou seja, nunca tente inovar muito em circunstâncias estranhas. Seguindo essas quatro regras, você sempre será bem quisto. A seguir, você pode ver um trecho dessa conversa de Alice com o mestre gato. Na cena, além da discussão sobre qual rumo tomar, há também, um processo de desconstrução de raciocínio que o gato promove sobre o possível paradeiro do coelho atrasado.



Mas ainda não é esse o ponto. O mais interessante nesse encontro, é como o gato transmite a ideia de escolha associada a de responsabilidade individual. Se não se sabe qual caminho tomar, é porque não se sabe para onde ir, uma ótima definição para o que chamamos de “indecisão”. A seguir, uma pequena transcrição da conversa que se refere a esse debate que estamos tendo.

Alice: Eu só queria saber que caminho tomar.
Gato: Isso depende do lugar onde quer ir.
Alice: Realmente não importa.
Gato: Então não importa que caminho tomar.

Enfim, para além de um filme infantil, “Alice no País das Maravilhas (1951)” traz bons pensamentos nada infantis. Diferentemente, de outros filmes com a marca Disney, este além do seu pouco ou nenhum comprometimento com a realidade, mostra que para um filme ser bom, não é preciso: 1) Que ele gire em torno de um grande propósito ou dilema, e/ou 2) Que haja uma lição de moral a ser apreendida ao longo dele. Quem não o viu depois de adulto, que o veja! Ahhh, e feliz desaniversário para quem nos lê.

5 comentários:

Girabela disse...

Lendo este post, lembrei que, há alguns anos, li uma interpretação "adulta" de outro clássico, O Mágico de Oz. Que criança poderia imaginar a grande representação da querela econômica dos Estados Unidos por trás dos belos sapatinhos de Dorothy?
Especificamente sobre a história de Alice, o diálogo, transcrito neste post, que ela tem com o gato me remontou a uma passagem* do livro (que também foi adaptado cinematograficamente) A Insustentável Leveza do Ser. Em tal livro, diferentemente do conselho dado pelo gato de Alice, Tomas acredita ser natural não saber para onde se quer ir.

*"Torturava-se com recriminações, mas terminou por se convencer de que era no fundo normal que não soubesse o que queria: nunca se pode saber aquilo que se deve querer, pois só se tem uma vida e não se pode nem compará-la com as vidas anteriores nem corrigi-la nas vidas posteriores. Seria melhor ficar com Tereza ou continuar sozinho? Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio
da vida já é a própria vida? E isso que faz con que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo esboço não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é o esboço de nada, é um esboço sem quadro. Tomas repete para si mesmo o provérbio alemão: einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é como não viver nunca." [A Insustentável Leveza do Ser]

E agora, José? Ouço o gato ou Tomas?


Abraços,
Gabriela.

Santiago. disse...

Gabi, se eu fosse você seguiria o gato. Não sou muito adepto dessa história que diz que pouco podemos fazer para escolher as coisas mais apropriadas para nossa vida. Acho que argumentos desse tipo tentam desresponsabilizar atitudes. E como sabemos, todos os atos possuem consequências. Se não temos meios para controlá-los, ou escolher evitar ou dar cabo, escreva o que eu digo, estaremos perdidos.

Claro que às vezes estamos como Alice, perdidos. Entretanto, isso não é frequente. Além do mais, mesmo errando, você acaba aprendendo. Mas claro que há pessoas que nunca aprendem.

Não lembrar o que é o "desaniversário" revela que você precisa rever o filme. Não lembra da cena da Lebre, Alice e o Chapeleiro Maluco, não?

Abraço.

Girabela disse...

Meu caro amigo, não preciso rever, preciso ver!


Abraços,
Gabriela.

Mai Melo disse...

Sou fascinadíssima por "Alice no país das maravilhas". Não só vi o filme algumas vezes, como, recentemente, reli o livro. Divino, divino!
Li também "Através do espelho e o que Alice encontrou lá", do mesmo Lewis Carroll e similar na riqueza de metáforas que deixaria qualquer Monteiro Lobato no chinelo.

Acho A insunstentável leveza um livro igualmente magnífico, mas confesso que fiquei um tanto incomodada com essas palavras de Tomas. Do jeito que ela fala, beira o determinismo e limita além da conta a lógica. Sou mais o gato também. Bem mais o gato.
: )

Beijo, beijo.

Santiago. disse...

Eu estou com Mai Melo, também fico com o mestre gato.

Abraço.